quinta-feira, 23 de agosto de 2012

FESTA DE NOSSA SRA DO ROSÁRIO

FESTA DE NOSSA SRA DO ROSÁRIO: RESISTÊNCIA E MEMÓRIA [1]

                        Artigo produzido por Josélia Barroso Queiroz Lima, doutoranda em Educação, pela Universidade Estadual de Maringá.

            Um verdadeiro testemunho da riqueza do patrimônio imaterial brasileiro, a Festa do Rosário é realizada em diversas cidades do país. Com uma origem histórica que remonta ao século XVI, através da vitória dos cristãos portugueses sobre os muçulmanos, na Batalha de Lepanto - atribuída não apenas à estratégia militar mas também à proteção da Virgem do Rosário - o culto se perpetuou no Brasil tanto pela extrema fé dos cristãos portugueses como pela crença dos escravos, que a têm como padroeira.(http://www.revistamuseu.com.br/naestrada/naestrada.asp?id=6431)

            Este artigo visa retomar, do ponto de vista histórico, a importância da Festa de Nossa Senhora do Rosário como símbolo do sincretismo religioso que marca a cultura brasileira. Por sincretismo entende-se a mistura de múltiplos elementos culturais que revelam as diferentes culturas que compõem o povo brasileiro. Em especifico, no caso em questão, busco retomar a importância do povo negro, que trazido da África, na condição de escravo pelos povos europeus, se tornam no Brasil o principal instrumento de construção da colônia. Seja via mineração, seja via pecuária e agricultura o povo negro foi, durante o período colonial e imperial, a mão de obra que fez este pais acontecer. No entanto, para além da produção econômica, eles nos deixaram uma memória imaterial incalculável. Pois, no processo de enfrentamento da violência branca: simbólica e física, no seio do catolicismo, única religião aceita no período colonial e imperial, pela via das Irmandades dos Homens Pretos, e da Irmandade do Rosário, eles encontraram um modo de expressão de suas crenças e de seus anseios por liberdade.

             Segundo Soares (2011; p.411):‘as irmandades eram um dos poucos espaços institucionais de acesso a liberdade. As práticas de votação para eleição das mesas diretoras das “irmandades de homens pretos” (escravos, forros e livres) deve ser vista como uma das expressões dessa liberdade”...  No período colonial,  a desigualdade entre homens brancos e negros era entendida como natural, pois decorria da vontade divina, o discurso religioso católico, dado pelo colonizador europeu organizava o cotidiano. E ainda hoje nas cidades coloniais como Diamantina, Serro e Sabinópolis tem-se as marcas desse período: as edificações das Igrejas à  Nossa Senhora do Rosário,  esta ocorria para que se realizasse o culto religioso pelos povos negros, sendo também um símbolo da separação entre homens pretos e homens brancos.

            A origem colonial de São Sebastião dos Correntes, atual Sabinópolis, remonta ao século XIX, ao ano de 1805, quando as terras são doadas e aqui vieram os primeiros moradores e junto trouxeram também aqueles que deveriam trabalhar a terra, os escravos. Os documentais paroquiais datados de 1822, assinados por Bento de Araujo Abreu, então capelão de São Sebastião dos Correntes registram os nascimentos, dos primeiros moradores, entre eles os nascimentos dos filhos de escravos. Cabia a Igreja Católica, pelo regime de padroado[2], o registro de nascimento, pois ela era o órgão oficial através do qual a colônia era organizada.
 Por outro lado, as fontes documentais da Paróquia de São Sebastião dos Correntes, assinados por Vigário Marcellino Nunes Ferreira, registram a organização das Festas a Nossa Senhora do Rosário como festas dos homens e mulheres negras. Nela o Rei e a Rainha, escravos, escolhidos através da votação feita na Irmandade do Rosário cultuavam a Santa. O sincretismo religioso se revela ao mostrar que no culto a Senhora do Rosário, os povos negros puderam manter o culto a seus orixás[3] e a musicalidade que tem no tambor o símbolo da cultura africana. Via Festa, os negros assumiam outra posição social diferente da que no cotidiano colonial possuíam. Sendo a Rainha e o Rei da Festa a Nossa Senhora do Rosário podiam viver o papel de poder e liberdade dado socialmente aos senhores brancos. Na irmandade, homens e mulheres podiam exercer o papel de poder ao votarem e serem votados, ocupando o papel de “irmãos de mesa”, Juízes, Mordomos de bandeiras e de mastro. Os dados documentais revelam que via festa, no ano de 1889 e 1890 foi concluída a edificação da Igreja do Rosário, marco que ainda hoje é referencia do Bairro do Rosário.  Os meses de ocorrência da festa não apontam para uma única data, assim conforme os documentos a festa aconteceu em janeiro, fevereiro, junho, agosto e setembro de diferentes anos: 1856, 1869, 1870, 1871,1890, o que nos indica que ela sempre foi anual, porém não necessariamente em Agosto. Na composição da festa tínhamos: os fogos, as músicas, as bandeiras, o rei e a rainha.
As Irmandades e a Festa do Rosário são marcas do catolicismo popular. No entanto, no período republicano, a igreja fez o enfrentamento desses modos de expressões religiosas. Assim, explica-se porque em 1903 a Irmandade São Sebastião é instituída e a Irmandade do Rosário ‘perde’ seu poder. Explica-se ainda porque a Festa do Rosário é retomada por Monsenhor Amantino, mas assumindo um caráter português. No qual o reinado é vivido por reis e rainhas brancos e os negros voltam a ser representados na condição de mucambos e mucambas. Tal posição foi uma tentativa da igreja de fazer frente ao pensamento liberal republicano, controlando a religiosidade popular.

            Ao pesquisar nossa historia, via documentação paroquial, resgatamos a importância da negritude como povo, que vivendo sua fé, via festa e ritos, pôde marcar nossa cultura, ainda hoje. Nesse sentido, a Festa do Rosário remete-nos ao nosso passado e ao nosso presente, ao nos convocar a refletir sobre a celebração da vida, pois enfrentando o julgo da escravidão com os tambores, as bandeiras e a vivência do lugar de reis e rainhas, durante séculos, os africanos mantiveram a força e a crença na liberdade. E se hoje, vivemos tempos de igualdade de direitos é importante retomar a memória, para  construirmos relações que revelem de fato tal igualdade no campo social.


REFERENCIAS :

Soares, Mariza de Carvalho: Política sem cidadania: eleições nas irmandades de homens pretos, século XVIII. In- Carvalho e Campos- Jose Murilo e Adriana Pereira (orgs.)- Perspectivas da Cidadania no Brasil Império. Jose Murilo de Carvalho e Adriana Pereira Campos; [tradução Edna Parra Candido]. Rio de Janeiro:  Civilização Brasileira, 2011.
KUNG, Hans.  Religiões do Mundo: em busca dos pontos comuns. Tradução Carlos Almeida Pereira. Campinas: Versus Editora, 2004.



[1] Este artigo decorre dos trabalhos de pesquisa de doutorado, na qual venho pesquisando sobre a relação entre religião católica e educação escolar em Sabinópolis. A pesquisa nos arquivos paroquiais possibilitaram o levantamento de documentos que comprovam ser a festa a Nossa Senhora do Rosário uma celebração de origem portuguesa, mas que no Brasil possibilitou a expressão  dos negros escravos.
[2]  Regime político estabelecido entre a Coroa Portuguesa e a Religião Católica o registro de nascimentos, óbitos e casamentos.
[3] Diferente do povo europeu, a religiosidade africana tem nos orixás- a representação das forcas da vida, da energia vital existente na matéria. Kung (2004) coloca-nos que a relação do homem tribal (africano e indígena) com a terra é de cuidado, pois ela é santificada pelos espíritos passados. O passado, o presente e o futuro constituem uma unidade indissociável, pois no mundo visível o eterno está invisivelmente presente. Portanto, não há necessidade de orações ou sacrifícios a divindades fora do mundo, como na tradição cristã, pois a eternidade não está no atemporal, mas no temporal, na natureza

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